Recentemente, em decisão proferida pelo Juiz Maurício Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, a UBER foi condenada a realizar a contratação – no regime CLT – de todos os motoristas cadastrados na plataforma, além de arcar com uma multa de 1 bilhão de reais por danos morais coletivos.
A decisão, por ter efeito em todo território nacional, atinge valores astronômicos e, apesar de, em um primeiro momento ter a possibilidade de ser vislumbrada com bons olhos pelos motoristas da plataforma, pode influenciar na própria decisão da empresa em dar seguimento nas suas atividades no Brasil, afetando drasticamente o cenário econômico relacionado ao transporte privado urbano.
Nesse cenário, uma análise técnica se mostra fundamental, para demonstrar que a projeção dada à notícia, embora relevante, é exagerada, no sentido de não ser definitiva, e por outro, demonstrar as forças de cada lado da discussão.
Pois bem.
O primeiro ponto a ser avaliado é que se trata de uma decisão de primeiro grau e, portanto, pode ser objeto de reforma junto ao Tribunal, nesse caso, o TRT-2.
Evidentemente, a própria UBER já sinalizou que irá recorrer e, apesar do recurso ordinário, em regra, não ter efeito suspensivo (“travar os efeitos da decisão”), poderá ser solicitado ao Tribunal – através do Relator – e, considerando o risco envolvido à saúde financeira da empresa, é provável sua concessão.
O grande diferencial desta decisão em relação às demais envolvendo a UBER, é o fato de se tratar de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho, representando os interesses de todos os motoristas cadastrados na plataforma.
Diante disso, a tendência é que o deslinde desse caso, com o julgamento de todos os recursos cabíveis, consolide a questão se há ou não vínculo de emprego entre os motoristas e a UBER, entendimento que poderá ser estendido para outras empresas com o mesmo modelo de negócios, tal como 99, Cabify, Wappa, Indriver, entre outras.
Superadas tais considerações, passa-se à avaliação das principais forças de cada lado da discussão.
É de conhecimento geral que, para o reconhecimento do vínculo de emprego, é necessária a presença concomitante de quatro requisitos, quais sejam, subordinação, onerosidade, pessoalidade e habitualidade.
No caso da UBER, o ponto central da discussão é a subordinação, pois os demais requisitos, em que pese existam argumentos contrários, podem ser aferidos por um olhar prático da situação, como por exemplo, a onerosidade, o motorista presta serviços mediante à expectativa de receber contraprestação financeira, a pessoalidade, não pode se fazer substituir no exercício de suas funções, e a habitualidade, ao passo que muitos motoristas se utilizam da plataforma de forma rotineira, sendo muitas vezes, a única forma de renda.
A subordinação é usualmente caracterizada como o controle do empregador em relação às atividades desempenhadas pelo empregado, contudo a doutrina e a jurisprudência trabalhista têm vislumbrado que a subordinação não deve ser interpretada apenas em seu aspecto clássico:

Mas sim, dada a evolução dos recursos tecnológicos, deve ser vislumbrada acompanhando as transformações nas relações entre os trabalhadores autônomos e as plataformas, instalando-se o que foi nomeada pelo Juiz como subordinação estrutural – as atividades do trabalhador estarem vinculadas à atividade-fim da empresa – em sua evolução algorítmica – com a aplicação de mecanismos de controle informatizados -:

Esse novo olhar acerca da subordinação foi o critério balizador do Magistrado ao reconhecer o vínculo de emprego entre os motoristas e a UBER, uma vez que, resumidamente, compreendeu que, ao se inscreverem e se utilizarem da plataforma, os motoristas se sujeitam a todas as regras da empresa, tal como o controle integral de suas atividades, atribuição de notas, possibilidade de aplicação de punição gradativa para determinados comportamentos e o controle fiscalizatório do que é feito, como e quando é feito.
Em outras palavras, compreendeu que a organização, controle, fiscalização e punição tecnológicos praticados pela UBER são suficientes para caracterizar a subordinação e, consequentemente, o vínculo de emprego.
Portanto, eventual recurso da empresa necessariamente deverá demonstrar a inexistência de subordinação estrutural e algorítmica ou, em cenário mais provável, demonstrar que o sentido atribuído pelo Juiz à subordinação foge aos limites da atividade jurisdicional, adentrando na esfera legislativa, haja vista a CLT relacionar a subordinação à dependência do empregador, e não ao mero uso controlado das tecnologias e o atendimento às principais diretrizes da empresa.
Por uma análise lógica, a dependência pressupõe transferência do poder de escolha, o que, em tese, é contrário a possibilidade de escolha do motorista, que pode decidir se realizará ou não o serviço e como realizará o serviço.
Tal argumento, pode ser reforçado pelo entendimento recente da 4ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho sobre caso análogo em que não houve o reconhecimento do vínculo de emprego entre o motorista e a UBER:
AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017 . RECONHECIMENTO DE RELAÇÃO DE EMPREGO. MOTORISTA DE APLICATIVO. UBER DO BRASIL. CONHECIMENTO E NÃO PROVIMENTO. I. A relação de emprego definida pela CLT (1943) tem como padrãoa relação clássica de trabalho industrial, comercial e de serviços. As novas formas de trabalho devem ser reguladas por lei própria e, enquanto o legislador não a editar, não pode o julgador aplicar o padrão da relação de emprego para todos os casos. O contrato regido pela CLT exige a convergência de quatro elementos configuradores: pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação jurídica. Esta decorre do poder hierárquico da empresa e se desdobra nos poderes diretivo, fiscalizador, regulamentar e disciplinar (punitivo). O enquadramento da relação estabelecida entre o motorista de aplicativo e a respectiva plataforma deve se dar com aquela prevista no ordenamento jurídico com maior afinidade, como é o caso da definida pela Lei nº 11.442/2007, do transportador autônomo, assim configurado aquele que é proprietário do veículo e tem relação de natureza comercial. II . As inovações tecnológicas estão transformando todas e cada parte de nossas vidas. A tecnologia não pede licença, mas sim, desculpa. A capacidade de trocar de forma rápida e barata grandes quantidades de dados e informações permitiu o surgimento da economia digital e do trabalho pelas plataformas digitais. Tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento, os consumidores adotaram essa transformação, pois serviços e bens são entregues de maneiras mais baratas e convenientes. Assim, as empresas se adaptaram para atender essa demanda do mercado consumidor. III. O trabalho pela plataforma tecnológica – e não para ela -, não atende aos critérios definidos nos artigos 2º e 3º da CLT, pois o usuário-motorista pode dispor livremente quando e se disponibilizará seu serviço de transporte para os usuários-clientes, sem qualquer exigência de trabalho mínimo, de número mínimo de viagens por período, de faturamento mínimo. No presente caso, o próprio motorista reconheceu que exercia outra atividade e ativava o aplicativo apenas nas horas vagas e quando assim desejasse. IV. Fundamentos da decisão agravada não desconstituídos. V. Agravo de que se conhece e a que se nega provimento, com aplicação da multa de 1% sobre o valor da causa, em favor da parte Agravada, com fundamento no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015.
(TST – Ag-AIRR: 00206145020205040014, Relator: Alexandre Luiz Ramos, Data de Julgamento: 14/02/2023, 4ª Turma, Data de Publicação: 17/03/2023).
Apesar do entendimento citado ser o mais recente, as próprias turmas do TST e os Tribunais Regionais divergem sobre o tema, tornando o deslinde desse caso extremamente relevante, pois, informará, de forma definitiva e final, por ser ação civil pública de grande projeção econômica, a posição do Poder Judiciário quanto à natureza da relação estabelecida entre os motoristas e a UBER. Assim, sem prejuízo de aprofundar no debate, fato é que a discussão está longe de ser encerrada e, apesar do cenário ser aparentemente favorável aos motoristas, os impactos econômicos oriundos de eventual saída da empresa do país – que pode ser a estratégia adotada por outras empresas do mesmo ramo -, merecem um olhar atento, inclusive dos consumidores, que suportarão indiretamente as despesas relacionadas à contratação dos motoristas em eventual manutenção da decisão.